POLÍTICA, SOCIEDADE E DESENVOLVIMENTO | OPINIÃO

sexta-feira, 5 de março de 2010

O PROCESSO FACE OCULTA


A democracia é o único sistema político no mundo que consagra dois princípios fundamentais: o princípio da liberdade e o princípio da diferença. Em primeiro lugar, o princípio da liberdade diz-nos que numa sociedade justa e democrática deve existir um conjunto de liberdades básicas e sagradas que devem ser comuns a todos. O princípio da diferença reconhece que as pessoas são efectivamente diferentes, nascem com características inatas distintas e ao longo da sua vida vão fazer evoluir essas mesmas características. Este princípio diz-nos que as diferenças entre as pessoas podem e devem existir, mas que devem obedecer a duas condições, em primeiro lugar, são estabelecidos limites e regras numa sociedade e nenhuma diferença deve extravasar esses limites e regras, caso contrário estará a por em causa a segurança de todos, em segundo lugar, apesar de diferentes, todos devem ter igualdade de oportunidades.

Os estados – nação modernos como Portugal regem-se por Constituições escritas, que consagram os princípios e valores fundamentais de uma sociedade. A Constituição da República Portuguesa é o estatuto jurídico fundamental, consagra os valores fundamentais comuns à larga maioria da população portuguesa. Ela diz-nos que em Portugal ninguém está acima da lei, quer isto dizer que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”, ou seja, a lei é igual para todos (Constituição da República Portuguesa, art. 13 nº1). Esta é uma garantia do Estado de Direito. Vivemos num Estado de Direito, num estado de leis e regras “baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais” (Constituição da República Portuguesa, art.2). Quer isto dizer, que são as leis que asseguram as nossas liberdades.

Após esta breve introdução, essencial para percebermos que as nossas acções e liberdades têm limites e que quando extravasamos os limites, estamos a violar a lei e temos de sofrer as consequências, devo dizer que neste momento em Portugal muitos excederam os seus limites e o mediatismo criado à volta do processo Face Oculta é absolutamente reprovável. Senão vejamos, em democracia tudo se sabe e tudo se discute e, portanto, a comunicação social tem um papel essencial na vida em sociedade, por um lado, pela responsabilidade do que publicam e, por outro lado, pela visibilidade das suas publicações que chegam a todos através dos mais variados instrumentos.
Em relação ao processo Face Oculta é bom que saibamos distinguir duas situações distintas, uma coisa é o processo Face Oculta, outra coisa são as chamadas escutas que envolvem o Primeiro – Ministro, José Sócrates. São assuntos completamente diferentes. Nada tem a ver um com o outro.

O processo Face Oculta surgiu no âmbito de uma investigação que ligava vários crimes de cariz económico entre o empresário Manuel Godinho e outras personalidades ligadas a empresas públicas e privadas de renome. Após a investigação inicial foram constituídos arguidos Armando Vara, ex vice-presidente do Millenium BCP, José Penedos, o então Presidente da REN (Redes Eléctricas Nacionais), Manuel Godinho, entre outros, por suspeita de alegado envolvimento numa rede de corrupção, baseada em tráfego de influências, lavagem de dinheiro, evasão fiscal, entre outros crimes. O processo está a entregue à justiça e está a decorrer com naturalidade. Quer isto dizer, que como cidadão estou satisfeito por ver que as autoridades judiciárias cumpriram o seu dever, investigaram, recolheram provas, constituíram arguidos e o processo está agora entregue aos tribunais.

Outra coisa completamente diferente do processo Face Oculta são as escutas que relacionam o Primeiro – Ministro. Alguns órgãos de comunicação social dizem que houve uma tentativa por parte do Primeiro – Ministro de controlar a comunicação social em Portugal, nomeadamente a TVI. Na minha opinião, há muita especulação, aproveitamento político e sobretudo a tentativa de decapitar politicamente o Primeiro – Ministro.
Bom, mas para os leitores perceberem melhor e tirarem as vossas próprias conclusões passo a explicar, o Grupo Media Capital é actualmente o maior grupo no sector dos media em Portugal, na televisão detém a TVI (líder de audiências) e tem o segundo maior grupo de rádio (Radio Comercial, Best Rock FM, Cidade FM, entre outras). Em 2005, o Grupo Prisa que detém o “El País” em Espanha entrou na Media Capital e tornou-se o maior accionista do grupo. Em 2006, o Grupo Prisa lançou uma Oferta Pública de Aquisição (OPA) sobre a totalidade das acções representativas do capital da Media Capital e passou a controlar este grupo. No final de 2008, e como resultado da crise internacional, a Prisa apresentou um nível de endividamento altamente insustentável, e para fazer face à dívida, resolve em 2009 por à venda cerca de 30% das suas acções. Quem surgiu interessado foi a PT. Contudo, este interesse da PT, legítimo por parte da empresa, foi posto em causa por parte dos partidos políticos que formam oposição ao governo, que ao questionarem José Sócrates no parlamento sobre este negócio ele afirmou não ter conhecimento sobre o mesmo. A partir daqui, a especulação em torno deste negócio agudizou-se. Ainda mais quando as oposições acusaram o Primeiro – Ministro de estar a mentir no parlamento.

O estado português possui uma golden share na PT, isto é, uma participação accionista detida pelo estado, que apesar de ser minoritária tem poderes especiais como eleger um terço do número total de administradores, como ter capacidade de veto sobre alterações de estatutos e ainda poderes na definição de estratégia e da política da empresa, entre outros. As golden shares existem para isso mesmo, para o Estado intervir na economia e salvaguardar o interesse público, nas áreas que no seu entender são essenciais, neste caso nas telecomunicações. O objectivo das goldens shares tem sido alvo de um debate ideológico intenso nos últimos anos. Podemos questioná-lo, mas não é esse o ponto essencial da questão.

A resposta do Governo perante esta polémica e perante estas acusações consistiu em utilizar a golden share para vetar o negócio entre a PT e a Prisa, ou seja, inviabilizou o negócio. Actualmente, o Grupo Prisa continua com a totalidade das acções.

Tudo isto para situar o leitor e ajudar a perceber o caso das escutas. Nas últimas semanas o semanário Sol tem vindo a publicar a transcrição de escutas entre o Primeiro – Ministro e Armando Vara, assim como entre Armando Vara e outras personalidades que estariam envolvidas nesta rede, neste “polvo” como avança o Sol, para tentar controlar a comunicação social em Portugal, onde Armando Vara seria digamos que o cabecilha de toda esta operação.

Bom, o semanário Sol tem violado sistematicamente o segredo de Justiça, porque estas escutas que tem vindo a publicar (parte delas, visto serem cerca de 50) foram apreciadas pelo Ministério Público, nomeadamente pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha Nascimento e pelo Procurador-geral da República, Pinto Monteiro, e ambos concluíram que as escutas não contém matéria de relevância criminal, isto é, nada do que o Primeiro – Ministro disse nas suas conversas privadas contém indícios de criminalidade. E isto é que é relevante num Estado de Direito, as pessoas com competência jurídica e democrática para apreciar as escutas que envolviam José Sócrates, ouviram as escutas e tiraram as suas conclusões, de que não existe matéria criminal nas conversas e, portanto, as escutas devem ser eliminadas. As escutas são um instrumento de combate e prevenção ao crime e só são relevantes quando têm matéria criminal, por isso, quando não tem matéria criminal devem permanecer na esfera privada.

Contudo, em democracia, como disse anteriormente tudo se discute e tudo se sabe e a comunicação social têm um papel essencial nas nossas vidas. O semanário Sol conseguiu ter acesso às escutas, que já tinham sido apreciadas e entregues à esfera privada, e resolveu publicá-las, pelo menos parte delas. E aqui entra o papel perverso, indigno e muito perigoso da comunicação social. Alguns dos jornalistas do Sol, como Felícia Cabrito acham, na sua opinião, que tem legitimidade para publicar conversas privadas em nome do interesse público. Bom, na minha opinião, o interesse público em democracia são as leis e o seu cumprimento e nunca a sua violação, mas as pessoas tem noções diferentes de liberdade. (Podemos contestar se a lei é boa ou má, mas temos instituições democráticas próprias para o efeito). E neste caso, a lei foi cumprida, havia suspeitas de que José Sócrates estaria envolvido numa rede ilegal para controlar a comunicação social, as escutas que são um instrumento essencial no combate à corrupção foram ouvidas e apreciadas por quem tem competências próprias e o Ministério Público conclui que as suspeitas são infundadas.

Todavia, parece-me que determinados jornalistas do Sol estão a confundir opiniões com factos. Na Comissão de Ética a decorrer no Parlamento, a audição com Felícia Cabrito foi clarificadora da sua confusão “ nós temos critérios diferentes na avaliação das escutas”, disse a jornalista. É inaceitável e condenável em democracia que um cidadão pretenda colocar-se acima da lei e julgar pessoas em praça pública, violando a lei e publicando opiniões como se de factos se tratasse. Em Portugal, ninguém está acima da lei, nem o Primeiro – Ministro, José Sócrates, nem o Semanário Sol e os seus jornalistas.

Um dos princípios fundamentais das democracias modernas é a separação de poderes, quer isto dizer, que as questões judiciais cabem aos tribunais e as questões políticas ao parlamento. E o semanário Sol, assim como todos os meios de comunicação social devem perceber que as liberdades têm limites, e o Sol e os seus responsáveis todas as semanas têm vindo a violar a lei e a ultrapassar os limites, julgando pessoas em praça pública, desrespeitando as liberdades e valores fundamentais dos cidadãos. Quem viola a lei é julgado em tribunal e não na esfera pública. As publicações do Sol tem vindo sistematicamente a empobrecer a nossa democracia e a destruir publicamente pessoas envolvidas no processo, que inocentes ou não, são iguais a todos nós e tem direito à privacidade.

A liberdade de imprensa é indispensável na vida em sociedade. Os cidadãos têm direito à informação. Contudo, não devemos confundir informação com difamação. Relatar factos é informar, é noticiar, formular juízos de opinião e fazer deles factos não é jornalismo.

Para terminar, uma nota muito breve a alguns partidos da oposição, temos vindo a assistir a atitudes totalmente deploráveis que tem por base atacar pessoalmente o Governo e retirar dividendos políticos com o caso das escutas, tentando desgastar a imagem e decapitar politicamente o Primeiro – Ministro, José Sócrates. Faço um apelo à agenda política para que voltem a concentrar as suas atenções nos reais problemas do país: o combate ao desemprego, a retoma económica, o endividamento externo e a falta de produtividade e competitividade da economia portuguesa. Os portugueses estão cansados do mediatismo à volta deste processo.